O cuidado do paciente com COVID-19 exige atenção ao sistema cardiovascular.
Em recente de artigo de revisão, com o objetivo de auxiliar os médicos na assistência aos pacientes com COVID-19, Costa e colaboradores propõem um algoritmo de avaliação cardiovascular, empregado como base para este informativo.
Dados brasileiros iniciais mostraram que 90% dos óbitos da COVID-19 ocorreram em pessoas com idade maior de 60 anos e 84% dos pacientes apresentavam pelo menos uma comorbidade, sendo que 51% tinham doença cardiovascular (DCV) e 37,7% tinham diabetes. A análise de 44.672 casos confirmados de COVID-19 em Wuhan evidenciou uma taxa de letalidade geral de 2,3%. Porém, a letalidade foi maior em DCV (10,5%), diabetes (7,3%) e hipertensão arterial (6%). Também foram descritas complicações cardiovasculares decorrentes da COVID-19, como injúria miocárdica (20% dos casos), arritmias (16%), miocardite (10%), além de insuficiência cardíaca (IC) e choque (até 5% dos casos).
O dano ao Sistema Cardiovascular (SCV) é provavelmente multifatorial e pode resultar tanto de um desequilíbrio entre alta demanda metabólica e baixa reserva cardíaca quanto de inflamação sistêmica e trombogênese, podendo ainda ocorrer por lesão direta cardíaca pelo vírus. Esse dano ocorre principalmente nos pacientes com fatores de risco cardiovascular (idade avançada, hipertensão e diabetes) ou com DCV prévia.
Na resposta inflamatória sistêmica provocada pela COVID-19, observam-se concentrações mais altas de citocinas que estão relacionadas à injúria do SCV. O aumento de troponina é acompanhado de elevação de outros marcadores inflamatórios, como dímero-D, ferritina, interleucina-6 (IL-6), desidrogenase láctica (DHL), proteína C reativa (PCR), procalcitonina e leucócitos.
Zhou et al. mostraram que os pacientes que evoluíram a óbito apresentaram níveis mais altos de dímero-D, IL-6, ferritina e DHL, além de linfopenia, sugerindo que esses marcadores possam ter implicações prognósticas. Dímero-D na admissão maior que 1mcg/mL foi preditor independente de mortalidade nessa população. Nos pacientes com COVID-19 também se observa aumento de BNP ou NT-proBNP, marcadores de disfunção miocárdica.
Numa meta-análise, incluindo 341 pacientes, os níveis de troponina I foram significativamente maiores naqueles com a forma grave da COVID-19. Houve forte correlação entre níveis altos de troponina e aumento de PCR e de NT-proBNP. Pacientes com níveis aumentados de troponina tiveram maior incidência de arritmias ventriculares e maior necessidade de ventilação mecânica. Complicações cardiovasculares, como IC, miocardite, infarto agudo do miocárdico, choque e arritmias, também são frequentes na injúria miocárdica. Pacientes com COVID-19 forma grave, podem evoluir rapidamente para comprometimento cardiovascular, choque e falência múltipla de órgãos. Foram descritos casos de miocardite fulminante, de rápida evolução e disfunção ventricular importante, com edema miocárdico difuso.
Alguns estudos sugerem que a lesão ao SCV secundária ao vírus possa estar relacionada à enzima de conversão da angiotensina 2 (ECA2). A ECA2 está relacionada ao sistema imune e presente em alta concentração no pulmão e no coração. Regula negativamente o sistema renina angiotensina pela inativação da angiotensina-2 e provavelmente tem um papel protetor contra o desenvolvimento de insuficiência respiratória e sua progressão. O SARS-CoV-2 contém quatro proteínas estruturais principais: a proteína spike (S), a proteína nucleocapsídeo (N), a proteína membrana (M) e o envelope proteico (E). O vírus liga-se por meio da proteína spike ao receptor da ECA2 e entra na célula hospedeira, onde ocorre a inativação da ECA2, o que favorece a lesão pulmonar e também lesões potencialmente graves no SCV.
Pacientes com DCV preexistente parecem ter níveis séricos aumentados da ECA2, o que pode contribuir para as manifestações mais graves nessa população. Da mesma forma, indivíduos com hipertensão arterial apresentariam maior expressão da ECA2 secundária ao uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) ou bloqueadores do receptor da angiotensina II (BRA), o que potencialmente aumentaria a susceptibilidade à infecção pelo SARS-CoV-2. Entretanto, os estudos atuais em humanos apresentaram limitações como o pequeno número de usuários dessas medicações, e grande parte dos analisados era de idosos, fator confundidor importante. E ainda, apesar da ECA2 e ECA serem enzimas com estruturas homólogas, os sítios de ativação são distintos e, dessa forma, a inibição da ECA não teria efeito direto sobre a atividade da ECA2. Por outro lado, sugere-se que a angiotensina II seja responsável pelo dano cardíaco do coronavírus e a administração de ECA2 recombinante normalizaria os níveis de angiotensina II. Estudos estão sendo realizados com ECA2 recombinante e com losartana. A recomendação atual é que os IECA e os BRA sejam mantidos nos pacientes que já estão em uso regular, pelo claro benefício do controle pressóricos e da diminuição de mortalidade naqueles com IC, como evidenciado em estudos randomizados. Nas formas graves da COVID-19 deve-se avaliar individualmente.
Manejo do paciente com COVID-19 – O tempo médio de início dos sintomas é de 4 a 5 dias, sendo que 97,5% dos contaminados vão desenvolvê-los em até 11,5 dias da exposição. A maioria dos pacientes assintomáticos ou oligossintomáticos e clinicamente estáveis não necessitam de internação hospitalar. Os pacientes com sintomas graves e evolução desfavorável vão requerer internação hospitalar. A avaliação inicial deve incluir: ECG, gasometria arterial com lactato, dímero-D, hemograma completo, avaliação de funções renal e hepática, fatores de coagulação, troponina, creatinofosfoquinase, ferritina, DHL, IL-6 e eletrólitos (sódio, magnésio, potássio e cálcio). Deve-se realizar radiografia de tórax e considerar a tomografia computadorizada (TC) de tórax em alguns casos. A TC mostra anormalidades em 85% dos pacientes, observando-se, em 75% deles, envolvimento pulmonar bilateral, comumente caracterizado por áreas de vidro fosco e consolidações subpleurais e periféricas. Aqueles com indicação de internação deverão ser submetidos a uma ecocardiografia.
Algoritmo de avaliação do SCV – Apesar de não haver recomendações formais sobre a avaliação cardiovascular do paciente com infecção suspeita ou confirmada por SARS-CoV-2, acredita-se que seja benéfica em: pacientes que tenham DCV preexistente ou fatores de risco cardiovasculares; pacientes que apresentem sinais e sintomas cardiovasculares (dispneia, choque, dor precordial, alteração eletrocardiográfica ou aumento de área cardíaca); presença de alteração em biomarcadores como dímero-D, troponina, NT-proBNP e ferritina; e pacientes com necessidade de internação. Aqueles com DCV são mais propensos a sofrer injúria miocárdica após infecção por SARSCoV-2 e apresentam maior risco de morte. O cardiologista deve fazer parte do cuidado.
A avaliação cardiológica inicial deve ser realizada por meio de história clínica, exame físico, dosagem de troponina e eletrocardiograma (ECG).
A presença de troponina acima do percentil 99 e alterações agudas no ECG auxilia na identificação dos pacientes de mais alto risco cardiovascular e podem contribuir na decisão de internação hospitalar e condução do caso. O ecocardiograma transtorácico deve ser considerado em todos os grupos de risco ou naqueles que necessitem de internação hospitalar. É o método de escolha inicial para avaliação da função cardíaca, devendo ser idealmente realizado na emergência pelo método point of care ou dinâmico. O exame é util para evidenciar o comprometimento sistólico e/ou diastólico do ventrículo esquerdo, fornece informações hemodinâmicas, além de permitir o diagnóstico de alterações pericárdicas. Pacientes com disfunção ventricular têm maior probabilidade de requerer ventilação mecânica e são de pior prognóstico. O acompanhamento do paciente crítico deve ser feito com ecocardiograma diário. A ressonância magnética deve ser considerada em pacientes estáveis e pode auxiliar no diagnóstico diferencial da etiologia da disfunção ventricular, relacionada a miocardite ou disfunção sistólica induzida por estresse.