Etiologia

A Rickettsia rickettsii é um cocobacilo, Gram-negativo, pleomórfico, sem motilidade, de difícil e lento crescimento. Bactéria intracelular obrigatória, a R. rickettsii apresenta como genoma um cromossomo circular único e multiplicação por divisão binária. As riquétsias são microrganismos visualizados por métodos especiais como a coloração pelo método de Gimenez e passíveis de cultivo apenas em culturas de células.
É considerada, à luz do conhecimento atual, o principal agente etiológico das febres maculosas nas Américas, incluindo-sea febre das Montanhas Rochosas na América do Norte e a Febre Maculosa Brasileira (FMB). No entanto, muito embora causadas pela mesma espécie de riquétsia, suas apresentações distinguem-se quanto à nomenclatura, aos reservatórios e aos vetores, mas também no que se refere a aspectos clínicos, gravidade e letalidade, que podem ser explicados, em algum
grau, por diferentes perfis de virulência de algumas cepas.
Nos humanos, a febre maculosa é adquirida pela picada do carrapato infectado com riquétsia, e a transmissão geralmente ocorre quando o artrópode permanece aderido ao hospedeiro. Nos carrapatos, a perpetuação das riquétsias é possibilitada por meio da transmissão vertical (transovariana), da transmissão estádio-estádio (transestadial) ou da transmissão através da cópula, além da possibilidade de alimentação simultânea de carrapatos infectados com não infectados em animais com suficiente riquetsemia. Os carrapatos permanecem infectados durante toda a vida, em geral de 18 a 36 meses.
Perfis ecoepidemiológicos associados às riquetsioses do grupo febre maculosa no Brasil:
1) FMB predominante na Região Sudeste, onde a R. rickettsii é o agente etiológico associado ao carrapato Amblyomma sculptum (complexo Amblyomma cajennense, “carrapato estrela”), como vetor. Animais domésticos e silvestres, como cavalos e capivaras, mantêm as populações de carrapatos na natureza, além do papel das capivaras como hospedeiros amplificadores da R. rickettsii. O risco de infecção para os humanos tem sido relacionado a fatores exposicionais que favorecem o contato com os carrapatos. Quanto à sazonalidade, a maioria dos casos se apresenta entre junho e novembro, coincidindo com a maior abundância dos estágios ninfais do A. sculptum.
2) FMB predominante na região metropolitana de São Paulo (divisa com Mata Atlântica), onde a R. rickettsii também é o agente etiológico, porém, o vetor é o carrapato Amblyomma aureolatum. Neste perfil, cães e gatos com acesso a áreas de Mata Atlântica são parasitados por carrapatos adultos, levando-os ao domicílio e peridomicílio, com risco para os humanos.
3) Febre maculosa produzida por Rickettsia parkeri, ocorre em áreas de Mata Atlântica nas regiões sul, sudeste e nordeste, onde a Rickettsia sp. cepa Mata Atlântica é o agente etiológico, associado principalmente ao carrapato Amblyomma ovale como vetor. Nesse perfil, os humanos têm risco de entrar em contato com os estágios adultos de A. ovale, por atividades em áreas preservadas de Mata Atlântica ou no domicílio/peridomicílio pela convivência com cães que têm acesso livre a áreas de Mata Atlântica (de onde vêm parasitados com carrapatos). As manifestações clínicas tendem a ser menos severas
que o quadro clínico desencadeado por R. rickettsii.
Outras espécies de carrapatos podem estar envolvidas com a transmissão de riquétsias patogênicas ao homem no Brasil indicando haver um espectro de cenários ecoepidemiológicos mais amplo do já reconhecido.

Patogenia e imunidade

Considera-se que, em geral, a transmissão da riquétsia seja viável a partir de seis a dez horas de parasitismo por um carrapato infectado. No entanto, esse período pode ser menor, a depender do estado de ativação das riquétsias presentes na glândula salivar do carrapato vetor. Após a infecção, a partir da picada por um carrapato infectado, em geral, o período de incubação pode variar de 2 a 14 dias (média de 7 dias). Deve ser citado que os aspectos fisiopatogênicos atribuídos à infecção causada pela R. rickettsii, em geral, resultam dos estudos em casos de febre das Montanhas Rochosas.

Manifestações clínicas

Observa-se perfil clínico variável durante a progressão da infecção e evolução da doença, com sinais e sintomas inicialmente leves e inespecíficos (síndrome febril inespecífica, síndrome febril exantemática), mas com potencial de rápida progressão para formas graves (síndrome febril hemorrágica, síndrome febril ictero-hemorrágica) associadas a disfunções orgânicas e elevado risco de óbito.
Há tendência a se considerar que as formas leves, com evolução benigna mesmo sem tratamento específico, sejam potencialmente resultantes de infecção por outras espécies de riquétsias – que não a R. rickettsii – menos patogênicas pertencentes ao grupo das febres maculosas no qual se incluiu a R. parkeri cepa Mata Atlântica. Adicionalmente, no caso de infecções assintomáticas não se pode descartar que a eventual detecção de anticorpos possa decorrer de infecção por espécies de riquétsias menos virulentas ou sem patogenicidade conhecida.
No que tange à febre maculosa causada pela R. rickettsii, um amplo espectro de manifestações clínicas são observadas. Após o período de incubação, a manifestação clínica inicial é febre, habitualmente elevada e de início súbito, associada a cefaleia holocraniana intensa, mialgia generalizada, artralgia, prostração, náusea e vômitos. Na fase inicial, frente à inespecificidade do quadro clínico, a FMB é frequentemente confundida com outros diagnósticos, como arboviroses (dengue, zika, chikungunya), leptospirose, enteroviroses e viroses respiratórias (incluindo influenza e covid-19).
O exantema é uma importante manifestação na FMB, surgindo após o terceiro dia de evolução, comumente observado a partir do quinto dia após o início dos sintomas. O exantema é de padrão maculopapular, não pruriginoso, acometendo inicialmente as extremidades (punhos e tornozelos, palmas das mãos e planta dos pés). Com a progressão da doença, passa a acometer braços e pernas e, posteriormente, tronco e face. Em quadros mais severos, a confluência das lesões
pode levar a extensas equimoses e sufusões hemorrágicas.
Ainda que a associação febre, cefaleia e exantema seja considerada a “tríade clínica clássica” da febre das Montanhas Rochosas, em pacientes com FMB sua ocorrência é variável. Deve ser ressaltado que a ausência de exantema não deve ser considerada critério de exclusão da FMB. Necrose cutânea, algumas vezes disseminada, é observada e gangrena de extremidades (artelhos e orelhas) ocorre em estágios avançados em número reduzido de pacientes. Nos quadros mais graves, são comuns insuficiência renal oligúrica, insuficiência respiratória, manifestações neurológicas, hemorragias (epistaxe, gengivorragia, hematúria, enterorragia, hemoptise), icterícia, arritmias cardíacas, alterações hemodinâmicas
(hipotensão e choque). Entre as alterações cardiopulmonares, são observados miocardite, pneumonite, edema agudo de pulmão, hemorragia pulmonar alveolar e síndrome da angústia respiratória do adulto. No sistema nervoso central, edema cerebral, meningite, encefalite, meningoencefalite e hemorragias se manifestam clinicamente com cefaleia holocraniana intensa, alterações comportamentais, torpor, convulsões e coma. A letalidade na febre maculosa causada pela R. rickettsii apresenta variações, sendo particularmente elevada na FMB, com taxas superiores à 50% em alguns estados brasileiros.

Alterações laboratoriais

Nos estágios iniciais da doença, as alterações laboratoriais, geralmente inespecíficas, podem estar ausentes ou serem pouco significativas. Com a progressão da doença, alterações laboratoriais, resultantes tanto de lesão celular quanto de disfunções orgânicas, passam a ser observadas. Entretanto, independentemente do tempo de evolução e gravidade da doença, as manifestações laboratoriais são inespecíficas e não devem ser utilizadas para suspeita clínica e decisão da indicação de tratamento.
– O hemograma, nas fases iniciais da doença, apresenta contagem de leucócitos geralmente dentro da normalidade ou, eventualmente, diminuída, sendo frequente desvio à esquerda. Leucocitose, quando presente, é observada em casos de maior gravidade. Trombocitopenia está presente na maioria dos pacientes, sendo mais exuberante nas fases avançadas da doença.
– Nas fases mais avançadas, são comumente observadas elevações dos níveis séricos ureia, creatinina, bilirrubinas, enzimas hepáticas (TGO e TGP), creatinoquinase e desidrogenase lática, sendo mais significativas em casos de maior gravidade.
– A hiponatremia é o principal distúrbio eletrolítico na FMB.
– Hipoalbuminemia e alterações das provas de coagulação são frequentes.
– Hipoxemia e acidose metabólica são alterações gasométricas comuns em pacientes nas fases avançadas da doença e com maior perfil de gravidade.
– Na análise do líquido cefalorraquidiano podem ser encontradas alterações inespecíficas, com pleocitose leve à moderada, mais frequentemente com predomínio linfo-monocitário e níveis variáveis de proteinorraquia.
Radiologicamente, diversas alterações variando de infiltrados intersticiais, derrame pleural a padrões com acometimento alveolar difuso.

Diagnóstico laboratorial

Deve ser ressaltado que, na prática clínica, os testes laboratoriais atualmente disponíveis ainda não proporcionam resultados específicos de modo ágil e oportuno para subsidiar as decisões iniciais acerca da indicação do tratamento específico para FMB em paciente com quadros febris agudos. O início do tratamento antimicrobiano apropriado para FMB deve ser fundamentado na avaliação conjunta do quadro clínico e dos antecedentes epidemiológicos de risco para parasitismo.

  • Diagnóstico sorológico:
  • Imunofluorescência indireta – IFI

A reação de imunofluorescência indireta (IFI) realizada em amostras pareadas de soro – fase aguda e fase de convalescença; é o método laboratorial considerado “padrão-ouro” para diagnóstico sorológico das riquetsioses. A técnica se fundamenta na detecção de anticorpos das classes IgM e, sobretudo, IgG a partir da utilização de antígenos espéciesespecíficos de riquétsias.
Para fins de confirmação laboratorial da doença, a detecção de anticorpos da classe IgM, ainda que possa sugerir infecção recente por Rickettsia, deve ser interpretada com cautela, sempre considerando se a apresentação clínica e o contexto epidemiológico do paciente sob avaliação são consonantes com a hipótese diagnóstica de FMB.
Para investigação de casos suspeitos de FMB e outras riquetsioses, preconiza-se a detecção de anticorpos IgG pela técnica de IFI em amostras pareadas, a primeira colhida precocemente, logo na suspeita, e a segunda amostra colhida na fase de convalescença, idealmente, no mínimo, 14 dias após a coleta da primeira amostra. São considerados casos confirmados de FMB pacientes que apresentam pela IFI elevação dos títulos de anticorpos da classe IgG – maior ou igual a quatro vezes – nas amostras pareadas.

  • Métodos diretos
  • Isolamento

Por permitir a identificação da espécie envolvida, o isolamento da riquétsia é considerado “padrão-ouro” para a definição da espécie causadora da doença. A técnica apresenta maior aplicabilidade para a investigação de casos graves da doença, sobretudo na fase aguda da doença, quando, geralmente, não se observam títulos detectáveis de anticorpos circulantes. No Brasil, o isolamento de riquétsias vem sendo realizado principalmente a partir do sangue (coágulo sanguíneo), fragmentos de pele (coletados por biópsia) e de vísceras (coletados, em geral, post mortem durante exame necroscópico ou viscerotomia). Exame restrito a laboratórios de referência, com limitações como a necessidade de meio de transporte específico, congelamento e a possibilidade de interferência, por exemplo, do uso de antibióticos durante a coleta, que pode gerar falso-negativo.

  • Detecção do genoma – Polimerase Chain Reaction – PCR

Ainda que os métodos de biologia molecular para detecção e identificação de riquétsias venham sendo cada vez mais disponibilizados em diversos laboratórios de referência de saúde pública, na prática clínica e para fins de vigilância seu uso ainda é restrito em muitas localidades.
A detecção molecular se baseia na amplificação de segmentos do genoma das riquétsias (genes que codificam a proteína de 17 kDa [htrA], a enzima citrato sintase [gtlA], as proteínas de superfície da membrana de 135-kDa [ompB] e 190-kDa [ompA]) pela técnica de Polimerase Chain Reaction (PCR).
Atualmente, além de garantir mais sensibilidade e especificidade, a PCR vem sendo de grande utilidade para investigação de casos suspeitos de FMB com evolução fatal, sobretudo nas fases agudas da doença, momento em que as técnicas sorológicas ainda apresentam baixa sensibilidade devido aos baixos títulos de anticorpos. A detecção de riquétsias pela técnica de PCR pode ser realizada a partir de sangue, fragmentos de pele e vísceras.

  • Imuno-histoquímica

Na técnica de imuno-histoquímica são utilizados anticorpos policlonais ou monoclonais específicos anti-R. rickettsii, podendo ser analisados fragmentos de diversos órgãos e tecidos, incluindo pele, pulmões, coração, fígado, baço, rins e cérebro. A imuno-histoquímica vem se mostrando importante ferramenta para diagnóstico laboratorial de casos suspeitos com evolução para óbito. No entanto, seu uso ainda é restrito, uma vez que a técnica vem sendo realizada apenas em alguns laboratórios de referência.

Considerações adicionais

Deve-se ressaltar, sobre a evolução da doença que, a suspeita tardia, com consequente retardo no início do tratamento específico, e a não utilização dos antimicrobianos preconizados, sobretudo da doxiciclina como primeira opção, figuram como os mais importantes fatores associados a um risco aumentado de óbito em pacientes com FMB. Adicionalmente, foram observados como fatores de pior prognóstico para a doença: idosos, sexo masculino, raça negra, alcoolismo, ausências de exantema e ausência do relato de parasitismo, esses últimos potencialmente associados à menor suspeita clínica e, consequentemente, ao início tardio do tratamento específico.
Além da necrose de extremidades, com potencial necessidade de amputações, outras sequelas da febre maculosa incluem surdez, paresias, alterações de pares cranianos, déficits motores, síndromes cerebelares e déficit de memória.

Referência

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. Febre maculosa: aspectos epidemiológicos, clínicos e ambientais / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. –
Brasília: Ministério da Saúde, 2022.

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