A interpretação dos testes
laboratoriais de avaliação hormonal da mulher pode ser um desafio clínico.

As variações do ciclo menstrual, do período gravídico e outros fatores transformam a interpretação dos resultados em um delicado equilíbrio entre o conhecimento da fisiologia hormonal e das técnicas laboratoriais. Somados às oscilações mensais e circadianas, fatores pré-analíticos e analíticos podem adicionar ainda mais complexidade à avaliação dos resultados. O ciclo menstrual é classicamente dividido em três fases: fase folicular (ou proliferativa), fase lútea (ou secretória) e fase menstrual (ou descamativa). Na fase folicular, que dura cerca de 12 a 14 dias, há um aumento gradual de gonadotrofinas, principalmente hormônio folículo-estimulante (FSH), bem como de estradiol e hormônio luteinizante (LH). A fase lútea dura, em média, 14 dias e é desencadeada pela ovulação, que ocorre em decorrência de uma elevação do LH (pico de LH). É caracterizada pela produção de progesterona e queda das gonadotrofinas. Após a fase lútea, há uma queda dos níveis de progesterona, que induz a descamação endometrial resultando na menstruação. Outras situações, como gravidez, lactação, distúrbios alimentares, uso de anticoncepcionais hormonais e amenorreia, podem ocasionar alterações hormonais características.

ESTROGÊNIOS – A determinação laboratorial dos estrogênios, principalmente o estradiol, tem importância nas avaliações do potencial reprodutivo da mulher, na reserva ovariana e no monitoramento de tratamentos de infertilidade. Outra aplicação é o controle de tratamento de câncer de mama em pacientes em uso de inibidores de aromatase. Nesses casos, o alvo terapêutico é a supressão da produção estrogênica ao mínimo possível e, segundo as recomendações internacionais, o estradiol deve estar menor que 10 pmol/L. Alguns inibidores de aromatase podem apresentar reação cruzada com os anticorpos antiestradiol e elevar falsamente os níveis desse esteroide em ensaios imunométricos diretos.

GONADOTROFINAS – Estão entre os hormônios mais comumente usados na prática clínica. Sua interpretação, no entanto, pode apresentar desafios. Em termos de métodos, o RIE tem baixa especificidade e sensibilidade para as gonadotrofinas e os ensaios tipo ELISA, além de menos sensíveis, apresentam reatividade cruzada. Assim, os métodos de escolha devem ser os imunométricos. O hormônio folículo-estimulante (FSH) é responsável pelo crescimento folicular e pela proliferação das células da granulosa. Tem papel na dominância e na produção de esteroides sexuais, especificamente de estrogênios. É secretado pela hipófise anterior em pulsos, sofre retrocontrole do estradiol e da inibina, e, esse padrão variável de secreção durante o ciclo é um dos fatores que dificultam sua interpretação. Na prática, é usado para avaliar insuficiência ovariana prematura (IOP), amenorreia, reserva ovariana e, eventualmente, auxiliar em ciclos de estimulação ovariana controlada. Deve ser avaliado na fase folicular precoce (1 a 3 dias do ciclo), sem uso concomitante de medicação. Na IOP, níveis acima de 25 mUI/mL, medidas em duas ocasiões, em intervalo de 4 semanas, sugerem o diagnóstico. Nas amenorreias primárias ou secundárias, FSH elevado (> 30 mUI/mL) sugere causa gonadal. Na avaliação laboratorial da reserva ovariana, FSH de 10 a 15 mUI/mL parece indicar mau prognóstico reprodutivo, em se tratando de reprodução assistida. Quanto mais elevado o FSH, menores são as chances de gravidez natural ou estimulada. O FSH também é útil no diagnóstico de menopausa ou transição menopausal em pacientes histerectomizadas e oligo ou assintomáticas.

O hormônio luteinizante (LH) é essencial no desencadeamento da ovulação, na maturação oocitária final e, também, na esteroidogênese, sendo o regulador principal da síntese de androgênios e tendo participação na produção de progesterona. Antes do período da puberdade, os níveis de gonadotrofinas são muito baixos e a relação LH/FSH em geral é menor que 1. A determinação de LH está indicada no diagnóstico do pico ovulatório e na investigação de hipogonadismo primário e puberdade precoce. Referente à classificação de puberdade precoce como dependente de gonadotrofinas, o LH é o teste com maior sensibilidade e os valores indicativos são 0,6 mUI/mL (ensaios fluorimétricos) ou 0,3 mUI/mL (eletroquimioluminescência). Valores de LH basal e após estímulo com GnRH são úteis na avaliação da ativação do eixo gonadotrófico na puberdade precoce. Um dos problemas dos testes de LH é a reatividade cruzada com gonadotrofina coriônica humana (hCG), mas métodos mais recentes com maior especificidade, em geral, não ocorre.

PROGESTERONA – A progesterona é um esteroide secretado pelo ovário, suprarrenais e placenta. Atinge, durante a fase lútea do ciclo menstrual, valores cerca de 10 a 20 vezes mais elevados que os da fase folicular. Durante a gestação, a placenta produz grandes quantidades desse hormônio. Sua determinação tem como principal aplicação clínica o diagnóstico de ciclos anovulatórios, nos quais não há formação de corpo lúteo e, portanto, os níveis de progesterona permanecem baixos durante todo o ciclo. O encontro de níveis elevados do hormônio na segunda metade do ciclo indica que houve ovulação. As concentrações de progesterona são muito variáveis durante a gestação, motivo pelo qual não deve ser usada para estimar a idade gestacional.

TESTOSTERONA – Os testes foram desenhados originalmente para medir a testosterona em concentrações mais elevadas (sexo masculino), e nesses casos apresentam boa sensibilidade e acurácia. A dosagem de testosterona na mulher apresenta muitos desafios. Em virtude do tamanho da molécula desse esteroide sexual, muitos testes imunométricos apresentam sensibilidade menor em baixas concentrações. Os métodos mais acurados são a espectrometria de massas e, algumas vezes, o RIE. Além disso, não há uma clara relação clínica entre baixos níveis de testosterona e a sintomatologia. Assim, a dosagem de androgênios, em especial a testosterona, está indicada em casos de hiperandrogenismo clínico, suspeita de tumor produtor de hormônios e na investigação da síndrome dos ovários policísticos (que pode, em uma parcela dos casos, cursar sem hiperandrogenismo).

GONADOTROFINA CORIÔNICA HUMANA – O hCG é um hormônio glicoproteico que tem papel fundamental na fase inicial da gestação. É utilizado no diagnóstico de gravidez, no controle de doença trofoblástica e como marcador tumoral. É produzido em grande quantidade pela placenta, pelo trofoblasto, mas também por outras estruturas como a hipófise. O hCG hipofisário é secretado de modo pulsátil e, de maneira semelhante ao LH, é detectado em baixas concentrações em mulheres no período menopausal. O que se conhece genericamente por hCG, na verdade, refere-se a frações diferentes: o hCG produzido pelo sinciciotrofoblasto; o hCG hiperglicosilado, produzido pelo citotrofloblasto; a subunidade livre, produzida comumente por tumores; o hCG hipofisário, entre outros. Os ensaios podem apresentar reações cruzadas com essas frações e confundir a interpretação clínica. Durante a gestação, é possível identificar níveis detectáveis após a implantação, que na prática é de cerca de 10 dias após a fertilização (entre 6 e 12 dias). Nessa fase, o hCG aumenta e dobra a cada 48 horas, aproximadamente. Após o terceiro mês, cai discretamente e permanece em um platô até o final da gestação. Há uma grande variabilidade nas concentrações do hCG de pessoa para pessoa e não devem ser utilizados valores desse analito para estimar a idade gestacional. Na gravidez ectópica, é comum uma subida irregular. Contudo, nos casos de doença trofoblástica, os níveis são, em geral, muito elevados.

OUTROS HORMÔNIOS

A prolactina (PRL) é produzida principalmente pelos lactotrofos e secretado pela hipófise anterior. Os valores séricos podem ser influenciados por tumores hipofisários ou de origem central, estrogênios, medicamentos, gravidez, estresse, estimulação da mama, alimentação, etc. A PRL pode ter diferentes formas moleculares identificadas pelos testes e que podem confundir a interpretação. Normalmente, 95% da PRL circulante é composta pela isoforma monomérica (23 kDa). O restante são outras formas (a dimérica, a macroprolactina), que não têm ação biológica, mas que são detectadas pelo método. Indicações mais comuns de seu uso na prática clínica são investigação de irregularidade menstrual, síndrome dos ovários policísticos, infertilidade ou galactorreia.

O hormônio anti-mulleriano (AMH) tem um papel fundamental na manutenção da quiescência dos folículos primordiais (ou seja, impedindo-os de entrar em fase de crescimento), modula a ação do receptor de FSH e parece inibir a ação da enzima aromatase. Atualmente, é medido por eletroquimioluminescência e por ELISA e, na mulher, apresenta valores muito baixos ao nascimento, aumentando gradualmente até a puberdade e, assim, permanecendo até o início do período reprodutivo. Atinge seu pico por volta da segunda década de vida e, após os 30 anos, declina paulatinamente até ficar muito baixo durante a transição menopausal. O AMH é, com a contagem dos folículos antrais, o marcador mais fidedigno da reserva ovariana. É também indicado na predição de resposta ovariana à estimulação controlada em ciclos de reprodução assistida.

DESAFIOS NA INTERPRETAÇÃO DOS TESTES LABORATORIAIS

Fatores pré-analíticos, analíticos e pós-analíticos podem prejudicar a correta interpretação dos testes laboratoriais. O médico deve estar ciente desses fatores e, em caso de dúvida, entrar em contato com o laboratório. É importante ressaltar que os exames são ferramentas subsidiárias e não devem substituir a anamnese, o exame físico e o raciocínio clínico.

Uso de anticoncepcional hormonal – A maioria dos anticoncepcionais hormonais (ACOH) (sistêmicos) exerce sua ação anovulatória por inibição do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Esse princípio faz com que a avaliação do eixo e dos hormônios sexuais na vigência de ACOH seja prejudicada. Assim, em geral, há supressão das gonadotrofinas e diminuição do estradiol, progesterona e testosterona

Macroprolactina – Na elevação da prolactina sem quadro clínico, a presença de macroprolactina deve ser investigada.

Biotina – Biotina é uma vitamina hidrossolúvel (B7) envolvida em várias atividades enzimáticas do metabolismo. Sua ingestão diária recomendada é de cerca de 300 mcg. Recentemente, a biotina tem sido utilizada em altas doses (3 a 10 mg) com o objetivo de melhorar a pele, cabelos e unhas. Sabe-se que biotina em altas doses pode interferir nos imunoensaios, podendo ocasionar resultados mais baixos (ensaios sanduíche) ou mais elevados (ensaios competitivos) do que o real.

Ciclo menstrual – A maioria dos hormônios é secretada obedecendo a ciclos circadianos, menstruais e secreção pulsátil. Algumas dessas variações são importantes e, por isso, a época do ciclo em que o teste foi colhido é importante para a sua interpretação. Por exemplo, marcadores de reserva ovariana como FSH e estradiol devem ser colhidos durante a fase folicular precoce (dias 1 e 4 do ciclo menstrual). Por sua vez, a dosagem de progesterona, para finalidade de comprovação da ovulação, deve ser feita após o 21o dia do ciclo.

Reatividade cruzada de hormônios – Hormônios com semelhança estrutural podem interferir nos ensaios. Outros fatores incluem hemólise, má-conservação das amostras, anticorpos heterófilos, efeito gancho por excesso do analito, interferência de substâncias desconhecidas, entre outras.

Edição 11. Novembro/2021

Assessoria Médica – Lab Rede

Referência: Maciel GAR. Avaliação hormonal da mulher em idade reprodutiva. In: Recomendações da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica / Medicina Laboratorial: Boas Práticas em Laboratório Clínico. Editora Manole LTDA, Barueri – SP, 2020.

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