A ausência de correlação clínico-laboratorial é um importante alerta para possível interferência de medicamentos em exames laboratoriais que avaliam a função tireoidiana.
Existem múltiplos fatores de interferência pré‐analíticos e metodológicos que podem influenciar os resultados do estudo da função tireoidiana e dificultar a sua interpretação diagnóstica. Os resultados alterados e não compatíveis com o contexto clínico do paciente podem sugerir uma ou mais interferência implícita. Dentre estes, devem ser avaliados os medicamentos, evitando investigações e tratamentos desnecessários. As consequências da terapia farmacológica na tireóide variam de artefatos laboratoriais à disfunção tireoidiana. Há uma crescente lista de medicamentos que podem levar a uma interpretação adversa de resultados de exames laboratoriais da tireoide. A seguir, serão descritos alguns destes medicamentos de uso comum na prática médica.
Amiodarona
A amiodarona, um agente antiarrítmico que possui 37,3% de iodo em peso e sofre desiodinação parcial, aproximadamente 7mg de iodeto por comprimido de 200mg, o que é cerca de 45 vezes a dose diária recomendada de 150μg para homens e mulheres não grávidas. A maioria dos doentes tratados com amiodarona mantém‐se em eutireoidismo. No entanto, o fármaco pode, per si, determinar um quadro de verdadeira disfunção tireoidiana. Além de induzir hipotireoidismo em pacientes susceptíveis, o excesso de iodo da amiodarona causa hipertireoidismo em alguns pacientes, um distúrbio conhecido como tireotoxicose tipo 1 induzida por amiodarona. A amiodarona produz efeitos previsíveis de alterações nos resultados dos exames laboratoriais da tireóide em pessoas eutireóideas. A inibição da conversão periférica e central de T4 em T3 por amiodarona e seu principal metabólito ativo, a desetilamiodarona, leva a reduções nos níveis circulatório e intrapituitário de T3, estimulando assim a liberação de tireotropina (TSH), através da ausência de feedback negativo. O aumento do TSH estimula a liberação tireoidiana de T4, que acumula ainda mais devido à conversão inibida para T3. O efeito líquido dessas mudanças é um nível de TSH sérico elevado ou no limite superior da faixa normal, altos níveis de T4 total e T4 livre e um nível T3 no limite inferior da faixa normal em paciente eutireoideo. Os níveis elevados de T4, neste contexto, podem ser confundidos com tireotoxicose primária, mas o nível de TSH exclui essa possibilidade.
Similarmente, elevações simultâneas de TSH e T4 livre podem ser confundidos com evidências de adenoma da hipófise secretor de tireotropina ou resistência hormonal da tireoide. Exames laboratoriais anteriores ao início da amiodarona, quando disponíveis, descartam esta condição clínica.
Heparina
O uso crônico de heparina (não fracionada ou de baixo peso molecular) ativa a lipase lipoproteica endotelial e a lipase hepática in vivo, estimulando a produção de AGL (ácidos graxos livres) a partir dos triglicérides séricos, que perdura in vitro (durante o armazenamento e incubação da amostra). Os AGL vão deslocar os hormônios tireoidianos ligados às proteínas transportadoras, aumentando os níveis de T3 e T4 livres, que exercem retrocontrole negativo sobre o TSH. Estas alterações são mais notórias em doentes com concentrações reduzidas de albumina e maior produção in vitro de AGL.
Fenitoína, Carbamazepina, Fenobarbital
A fenitoína, a carbamazepina e o fenobarbital estimulam a captação e metabolização hepáticas da T4 e T3 (em parte através da ação da 5’‐deiodinase). Globalmente, os doentes apresentam níveis de T4 (livre e total) ligeiramente diminuídos, T3 (livre e total) normais ou ligeiramente reduzidos e TSH normal. Além de aumentar o metabolismo tireoidiano, fenitoína e carbamazepina deslocam T4 de proteínas de ligação. Apesar do efeito imediato corresponder a uma elevação transitória do T4 livre com supressão recíproca do TSH, ambos os níveis devem normalizar após alcançar um equilíbrio. Portanto, parece paradoxal que pacientes clinicamente eutireoideos em uso desses medicamentos apresentem baixos níveis de T4 livre e níveis normais de TSH, sugerindo hipotireoidismo. No entanto, foi esclarecido que valores reduzidos de T4 livre neste contexto são artefatos e estão relacionados, eventualmente, à diluição do soro nos ensaios que requerem esta etapa. A importância clínica dessas interações geralmente é insignificante.
Furosemida
As doses habitualmente prescritas de furosemida não se associam a interferência. Doses elevadas (superiores a 80 mg de furosemida, administradas por via intravenosa) vão mobilizar T4 ligado à TBG, gerando um efeito transitório de redução da T4 total e elevação da T4 livre. Estas alterações são temporárias, persistindo apenas enquanto o fármaco permanece em circulação. Situações de hipoalbuminemia acentuam os efeitos citados.
Salicilatos
Os salicilatos (em doses superiores a 2 g diários) também condicionam alterações transitórias dos parâmetros da função tireóidea similares aos induzidos pela furosemida. O aumento da fração de T4 livre pode ser da ordem de 100%.
Anti-inflamatórios
O diclofenaco e o ácido mefenâmico promovem a transferência da T4 ligada à TBG para a fração livre em circulação, elevando os níveis da T4L em cerca de 7 e 31%, respectivamente.
Glicocorticoides
Inibem a secreção de TSH (dificultando o diagnóstico de uma situação de hipotireoidismo primário), diminuem a concentração e capacidade de ligação da TBG e a conversão de T4 em T3. Os efeitos dos glicocorticoides dependem da dose e via de administração dos fármacos. As interferências são mais comuns na administração de doses elevadas podendo manifestar‐se entre 24‐36 horas após o início da terapêutica. O resultado final são níveis baixos ou muito baixos de T3, níveis baixos de TSH e T4 total e ligeiramente reduzidos a normais de T4 livre.
Propranolol
O propranolol exerce um efeito dose-dependente de inibição da 5’‐deiodinase, com redução de T3, preservando níveis normais de TSH. O bloqueio de conversão de T4 em T3 leva a níveis reduzidos de hormônios circulantes.
Agentes de contraste iodado
Os agentes de contraste iodado inibem as 5’‐deiodinases tipo 1 e 2. Deste modo, elevam ligeiramente a T4 sérica e diminuem os níveis séricos de T3 e a produção local de T3 a nível hipofisário, com subsequente aumento da secreção da TSH. O uso de contraste iodado pode agravar situações de hipotireoidismo prévio. Grandes doses de iodo podem desencadear tireotoxicose em doentes com potencial função tireoidiana autônoma.
Estrogênios, Tamoxifeno, Androgênios
O uso de estrogênios e de tamoxifeno (modulador seletivo dos receptores de estrogênios) origina um aumento da concentração da TBG e, associadamente, da T3 e T4 totais, sem interferir com os níveis de TSH, T3 e T4 livres. Os estrogênios (exceto se administrados por via transdérmica) induzem aumento da síntese e glicosilação da TBG, diminuindo a sua depuração. Os androgênios (esteroides anabolizantes) diminuem a concentração da TBG e, por conseguinte, de T3 e T4 total, sem influenciar os níveis de TSH e de T3 e T4 livres.
Lítio
O lítio causa hipotireoidismo e bócio por diminuir a liberação dos hormônios tireoidianos. Os fatores de risco incluem sexo feminino, idade acima de 40 anos, e teste positivo para antiperoxidase tireoidiana (anti-TPO). O lítio também é associado a tireoidite indolor.
Biotina
A biotina é usada farmacologicamente para tratar doenças neuromusculares, como esclerose múltipla, e tornou-se popular como suplemento dietético. A biotina é utilizada em reagentes laboratoriais de imunoensaios por causa de sua forte ligação não covalente à estreptavidina, usada na fase sólida destes métodos. Ensaios laboratoriais comerciais para T4 livre, T3, TSH, anticorpo antireceptor do TSH (TRAb) comumente incluem biotinilação. Numerosas publicações relatando interferência analítica de biotina levando a diagnóstico equivocado, incluindo casos com TSH falsamente baixo, T4 livre falsamente elevado e resultado espúrio de TRAb positivo, mimetizando um perfil bioquímico de Doença de Graves. O tipo e grau de interferência dependem do ensaio/plataforma analítica. Outras drogas podem ser acrescentadas a esta lista. Por exemplo, para os portadores de hipotireoidismo, usando levotiroxina, é importante lembrar dos medicamentos que podem alterar sua absorção e prejudicar o controle hormonal, como os inibidores de bomba de prótons, hidróxido de alumínio, sequestrantes de ácidos biliares, sulfato ferroso, carbonato de cálcio e raloxifeno.
Assessoria Médica Lab Rede
Referência 1. N Engl J Med 2019;381(8):749-61 2. Rev Port Endocrinol Diabetes Metab. 2016;11(2):277–286